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Geléia Geral

Adalberto Batista, entrevista realizada em 17 de janeiro de 2005

depoimento de Adalberto Batista, concedido em entrevista realizada em 17 de janeiro de 2005

Eu estava tentando lembrar com meu pai hoje qual foi o ano. Eu sou horrível pra isso. Eu sei que foi bem no começo. Meu nome é Adalberto Batista, tenho 34 anos. Nasci em 23 de julho de 1970 em Jaú, São Paulo. No circo. E fiquei no circo até meus 28 anos. Hoje eu parei totalmente com a arte circense e me tornei um comerciante. Tenho uma lanchonete, na Barra do Sahy, no litoral norte. Lanches Pingüim. E tenho dois filhos lindos. O Nicolas tem dez anos e o Cauê onze meses. Eu parei com circo porque eu já estava sentindo cansaço. Sentia falta de muitas coisas como: estudo, segurança até mesmo financeira.

No circo eu fazia quase tudo e nada. Nunca tive um número perfeito. Como o circo era circo comédia, eu entrava em comédias, dramas. Começava às vezes com show musical na primeira parte. Eu tocava bateria. Tocava guitarra. Você tem que fazer sempre alguma coisa. Se faltasse guitarrista, eu tinha ser guitarrista.  Se faltasse outra coisa… Tinha números na primeira parte. Tinha uma média de dez pessoas trabalhando no circo. E saía do palco e ia pra porta do circo, saía da porta ia pra música, da música pra limpar as cadeiras. O que precisasse.  Então, tinha um intervalo de 10 minutos, depois começava a comédia. Comédia ou drama. A maioria ultimamente era comédia, porque drama não dava pra levar mais. Porque era muita bagunça, falta de estrutura… Não era um lugar igual aqui. Sossegado, calmo. Geralmente era meio… Você tinha que se adaptar. A bagunça era assim, das pessoas não respeitarem também. Então, a gente teve que se adaptar. Ou você batia de frente, no bom sentido, com os bairros que eram bagunceiros, ou então você tinha que levar o espetáculo até mesmo meio bagunçado também, senão você não conseguia. Você queria fazer uma coisa legal como um sapateado, já não existia. Eles não aceitavam. Então você levava brincadeira: jogava água na cabeça da molecada e eles gostavam. Infelizmente, isso foi tirando a graça do circo.

Eu fiquei em circo até os 28 anos, mas foi assim: meu pai começou com o circo dele em 1986. Estávamos no Centro Cultural com uma lona alugada pela Dirce Militello. Minha mãe resolveu fazer um circo. Sem dinheiro sem nada. E nós fizemos um circo. Catorze metros de redondo. Não era bem circo, era uma barraca. Muito pequeno. Poucas cadeiras. Não tinha nada. Aquela coisa bem mambembe mesmo. Chega e se apresenta. Mas, foi legal. Nós pegamos uns bairros legais e compramos uma lona maior. E foi indo. Eu tinha dezesseis anos. Antes disso já trabalhava em circo. Sempre no circo. Junto com meu pai. Meu pai era empregado. Meu pai trabalhou com Tonico e Tinoco, trabalhou pra vários outros. Carlito Martins, que trabalhava na Record. Meu pai vem dessa fase circo. E eu acompanhando. E, então dos 16 até os 18, 19 fiquei no circo do meu pai ainda mais diretamente. Depois eu me afastei e fui pra música. Fui tocar bateria e conheci um outro lado legal. Porque eu era meio preso. Sabe aquela coisa de circo? Eu era meio amarrada, meio… Nessa fase eu conheci outro lado legal. Que é a noite. Conversar com várias pessoas.

Mas, a Academia Piolin eu conheci por causa da Amercy. Que é o nome dela. Amercy Marrocos. Ela me chama de filho velho. De filho, assim: “Você é meu filho careca.” Ela é bem amiga da minha mãe, de muitos anos. Ela, o Roger. ‘Seu’ Roger um pouco mais afastado, mas a Amercy sempre junto. A Amercy criticava minha mãe porque eu não estudava. Porque no circo era muito, muito difícil. Difícil de estudar nos dois sentidos. Tanto aprender de escola quanto de circo. De circo nem tanto porque eu ia às várias turnês. Mas a Amercy me levou pra casa dela em 1970 e alguma coisa que não me lembro direito. Quando eu fui pra Amercy eu tinha uns oito anos, era bem novinho. Foi em 1978, mais ou menos. Estudava, quando chegava de manhã levantava e ia pra São Paulo, no Pacaembu, onde era na época. Em baixo da arquibancada. Só que eu não fiquei muito lá, fiquei uns sete meses. Ela morava em Campinas. A gente saía de madrugada, clareando o dia a gente chegava em São Paulo e ia pro Paulo Machado de Carvalho, o Estádio do Pacaembu. A gente estudava embaixo da arquibancada. Ela dava aula e eu aprendia. E eu estava freqüentando a escola também, mas quando eu chegava do circo era muito de tardezinha. Quase não estudei de verdade. Era mais circo mesmo! Tentei fazer as duas coisas, mas não teve jeito. Eu nem tava começando a estudar direito. Meu estudo sempre foi atrasado. No circo, eu estudava um ano, o outro ano eu não estudava. Começava a estudar, parava. Não tinha uma freqüência. Isso ainda sentia muita falta, do estudo. Eu sinto até hoje. Estudei um pouco, até a quinta série. O básico. Depois eu fiz alguns cursinhos, consegui fechar o primeiro grau. Mas no circo mesmo… Esse foi um dos motivos que eu também saí. Eu saí pra tentar… Deixa eu contar uma coisa aqui. Teve uma temporada que em três meses nós ficamos uma semana em cada bairro. Um político tinha alugado o circo. Ficava sexta, sábado e domingo em um bairro. Segunda desmontava. Sexta, sábado domingo em outro. Minha vida sempre foi essa. Não tem como estudar. Eu entrava na escola já era hora de embora. Era terrível. Estudar dentro do circo assim, com alguém te ensinando, não existe. Isso não tem.

Quando você tá no circo você acha que a sua vida é malabares, é monociclo, é tranca. Eu aprendia essas coisas, só que não me aperfeiçoava. Porque a minha geração… A minha geração já não foi tão de aprendizagem assim. Diferente do meu pai. Ele quando ia dar um fli-flap, se errasse um milímetro, meu vô corrigia na hora. E eu aprendi a saltar quanto tinha… com a Amercy! Depois parei. Fiquei muitos anos sem dar um fli-flap. Fui aprender agora depois de adulto. Então, na minha geração já não tem mais esse ‘vamos levar o circo’. Não tem. Foi morrendo, morrendo… E mesmo no circo o que eu aprendia era muito mais por mim mesmo. Eu mesmo. Tudo que eu aprendi foi sempre cutucando. Tinha alguém fazendo malabares eu corria, pegava as bolinhas. A pessoa me dava bronca ou me dava a bolinha.  O que a gente ensaiava todo mundo junto basicamente era teatro. Os dramas e as comédias. Palco. Picadeiro pouco, quase nada. Quase nada mesmo. Eu fazia um número de pratos que aprendi por necessidade. Meu tio Biribi, irmão do meu pai, que me ensinou. Ele falou: “Pega o prato, faz o prato” Ensaiei num dia, à noite eu fiz no circo. Não tinha o que fazer, eu cheguei peguei os pratos e rodei. Comecei com sete, oito pratos. Depois fiz uma banquilha com 18. E eu gostava de prato porque eu vendia bem o peixe. Modéstia a parte… Sem modéstia nada! Eu era bom mesmo! Fazia muita bagunça. Eu gostava dos pratos! Era uma coisa simples. Era aquele arroz com feijão. Mas quando saía nego batia palma. Eu achava legal isso porque fui eu que busquei. Sabe aquela coisa? Que não tinha nada? Eu fiz isso e achava legal. Uma vez não tinha rola, não tinha nada pra levar. Tinha uma matinê e o pessoal que estava no circo era cachê. Não veio ninguém. O que eu fiz? Peguei um rola, coloquei uma roupa de palhaço, coloquei um sutiã. Coloquei palhaço e subi no rola e tirei a roupa. Acabei tirando a roupa, o sutiã e sai correndo. Então, o circo tinha muito isso: ou você fazia ou você fazia.

Em 1986 nós alugamos o circo pro Centro Cultural São Paulo. Ficamos um mês lá só pra tomar conta da lona. Tanto é que até teve um caso legal com meu pai. Olha, meu pai, falou de teatro, ele… ele sabe o que faz! Meu pai realmente é dessa época de teatro. Iam levar um drama chamado “Cara Suja” e faltou uma pessoa pra fazer um dos personagens. Não pode vir. A Vicky falou até: “O que que eu vou fazer?” e o Carlito: “Coloca o Biriba.” “Mas o rapaz que tá tomando conta do circo aí ele não vai… não vai dar conta.” E ele: “Pode colocar que eu garanto.” Aí meu pai foi e pegou o papel do rapaz e nunca mais saiu. Então, tem esse lado que eu acho legal de circo-teatro. Às vezes tem alguma coisa que esta lá escondida e surge.

Na época da Piolin, que eu fiquei na casa da Amercy, lembro que a gente acordava muito cedo! Era cedo de verdade, madrugada mesmo. Três horas da manhã saía de casa. O que eu lembro é que era uma coisa que eu queria muito fazer. Eu queria aprender, sempre gostei de aprender. Mesmo com dificuldades, eu sempre gostei. Pra mim foi muito bom. Eu só não continuei porque o circo ia fazer uma viagem para muito longe pra eu ficar longe do meu pai por mais de uma semana… com nove anos de idade, era impossível. Não deu. Por mais que eu adorasse a Amercy, e tudo. Mas a Escola Piolin pra mim foi uma coisa que eu… Fui até entrevistado uma vez! Acho que talvez por eu ser de circo. Fizeram uma matéria sobre a escola e me chamaram num canto. Eu era muito pequeno! Me perguntaram: Quem é meu pai? De onde eu vim? Porque, onde? Minha rotinha era assim: acordava muito cedo. Chegando no Pacaembu, aquecimento. Sempre tinha. Tinha que correr o campo todo, dar a volta. Fazia o aquecimento no campo, na parte externa. Todo mundo fazia o aquecimento junto. E ia, voltava. Respiração, concentração e começava. Os professores te colocavam pra treinar em tudo, pra você ter idéia do que você era melhor. Na área que você era melhor. Me colocaram em todos. Tinha malabares. Sempre. Malabares é fundamental. Não me lembro quem dava malabares. Saltos era a Amercy. Cama elástica era a Amercy. Malabares e cama elástica. Basicamente o meu forte era isso. Não me lembro mais quem eram os professores. Amercy dava aula de aéreos também. Tinha o Gibe que ensaiava alguma coisa também. Nem me lembro bem dos professores… Não lembro como eles eram, não me lembro. Bem, mas tudo que mandavam fazer, parada de mão…  Tudo lá na Escola Piolin eu fazia. Eles viam o que se destacavam mais ou que tinha mais tendência pra fazer. Quando eu comecei a ficar legal, eu saí. Uma pena… Até ia ter um desfile que eu ia participar e não deu pra ir.

Eu sinto muita falta disso. De não ter vivido mais o circo. Sabe, tantos anos morando no circo e nunca me apresentei, nunca… Sempre no circo, vai, mas. Fora do circo… Tá, eu tinha o número dos pratinhos. Eu já fiz número de faca. Até acabei com a vida de uma árvore. Ô, me arrependo até hoje. Eu treinei com ela. Não sabia que ia ser prejudicial. Tanto. Quando o circo voltou no bairro, muitos anos depois, eu fui lá ver a árvore… seca! seca! Ô judiação, se arrependimento matasse. Tadinha… Precisa ver o que eu fazia. Basicamente, eu entrava com meu pai de palhaço. Mas nunca fiz de verdade, nunca consegui fazer palhaço. Já tentei. Mas era muito derrubado. Muito sem graça. Canastrão demais. Eu tentava, mas… Eu era bom clon, eu dava muita força pro meu pai. Desde os 14 anos eu faço clon pra ele. Mesmo sendo meio nervosinho, mas eu sempre fazia. Deixa-me ver. Acho que mágica, magia… Não me lembro bem. Tudo isso foi depois, eu já era mais velho. Acho que nada do que eu aprendi diretamente da Piolin, eu levei… Lógico que levei a experiência de ter aprendido e tudo mais. Mas foi muito pouco tempo. Pouco tempo demais. A minha cabeça era muito pequena pra absorver. Mas tem o corporal. Eu tenho um bom físico, sempre tive. Eu sempre fiz muito salto. Subi corda. Subir na corda é fácil pra mim. Parada de mão, onde estiver eu levanto. Aqui nessa cadeira, nessa mesa aqui, é um susto. Mesmo fazendo dez anos que eu não faço. E isso eu peguei aonde? Mas, posso falar uma coisa: eu nunca tinha pensado por esse lado… Não sei. Nesse lado de ter aprendido desde criança. Falar com você agora abriu minha cabeça. Antes de fazer aulas na Piolin… Bom. O filho de circense ele está sempre treinando, sempre em cima do palco. Está sempre subindo em cadeira. Então, está sempre treinando alguma coisa. Talvez não com essa orientação. Uma orientação que tem que ter. De fazer ponta de pé, levantar a cabeça, esses pequenos grandes detalhes que eu acho que tem que ter. E isso foi o que a Piolin passou pra mim.

Quando fui pra casa da Amercy era pra estudar na escola e pra estudar na Piolin. A idéia era fazer os dois. Mas, a prioridade era a Piolin. Se desse pra conciliar, se chegasse mais cedo… Não deu. Era muito longe. Então, eu fiquei só na Piolin. às vezes a Mayrã ia com a gente. A filha da Amercy. Só que a Mayrã não ia tanto. Ela ia quando tinha vontade. Ia, não ia… Ela se direcionou pro lado da escola. Colégio. E eu queria ensaiar! Hoje, eu queria tanto passar pros meus filhos o que eu já aprendi em circo. Mas ensinando! Eu tenho tanta coisinha pra ensinar. Mas, o meu trabalho… Você viu como que é. Eu faço tudo, tudo e não sobra pra nada.

Por mais que eu morasse no circo ninguém me ensinava, por mais que meu pai soubesse, ele nunca foi de ensinar e isso eu cobrei muito dele. Até hoje eu cobro. Então, quando eu tava lá na Piolin pra mim eu tava realizando tudo que eu queria. Que era aprender sobre circo. Eu fiquei sabendo da escola pela Amercy. Sempre a Amercy! Ela que foi lá no circo me buscar. Falou: “Neusa, ensaia seu filho. Ensaia esse moleque. Ele tá crescendo, tem um corpo bom.” Minha mãe falou: “Quer levar ele?” Ela falou: “Agora.” Já foi pegando as roupas. E levou. Nem teve papo. Não teve programação, não teve nada. Pegou e levou. Não foi assim preparado, não. Pegou, levou. Acho que foi logo no primeiro ano da Piolin mesmo. Logo no começo. O que eu aprendi na Piolin foi a minha base. Pra mim foi a base. Base de grupo. Aprender, dividir, então… Minha escola. A escola que eu tive acho que foi a Piolin. Escola que eu falo… de vida. É, foi. Mesmo sem saber. Mesmo não tendo idade. Porque com oito, nove anos, você não pensa, só quer brincar. Mas hoje pensando por esse lado. Fisicamente e psicologicamente no lado de grupo. Sabe aquele negócio de uma pessoa te falar: “Coloca a mão no chão, coloca os dois pés juntos, pra fazer parada de mão, dedo assim.” Você aprender a ouvir. Então, pra mim eu acho que foi isso. Mas eu fiquei pouquíssimo tempo na escola. Então, o que eu pude aprender com a minha pouca instrução de circo? Na raça. Então o que eu aprendi muito. No chão. E o que tivesse à mão. Como nem sempre tinha número de ar. Porque o circo era pequeno, não tinha cúpula nem nada. Então era o que tinha na mão. Tinha o que? Garrafa, bolinha, monociclo. Quando eu consegui fazer um monociclo lá meio improvisado. Com banco de bicicleta mesmo, foi outra invenção. Fui ensaiar, não conseguia, não conseguia. Tentei, tentei, não consegui. Desisti. Não tinha ninguém pra me orientar. Sobe assim, vai assim… Na minha criação eu senti falta também de um professor. Mas, na época eu não pensava o que era ter uma escola de circo. Eu estando com a Amercy, aprendendo na escola de circo… Era tudo que eu queria. Eu não imaginava o que vai ser amanhã. O que poderia gerar isso. Não. Eu queria estar lá e pronto. Eu queria aprender a fazer alguma coisa.

Mas hoje você tá me fazendo perguntas… Perguntando coisas pra eu me lembrar que me fazem raciocinar a importância tão… Que isso tem! Eu não pensava nisso. Eu fui um dos primeiros alunos da escola! Eu não tinha me dado conta disso. Eu critico às vezes que a gente não vai numa reunião, num espaço, num encontro. Nada, nada de circo. Nós nos isolamos assim, sabe? Eu sinto falta. Porque eu gosto. Mas, nos isolamos porque foi morrendo… A nossa reunião era no Largo do Paissandu. Que a gente chamava Café. A nossa reunião circense era lá. Ia lá, conversava, batia papo. E foi indo, foi indo, foi parando, parando. Fofoca daqui, fofoca dali. Briga daqui. E, foi morrendo. Eu fui muitas vezes no Café. A minha vontade era chegar segunda pra ir pro Café. Ainda não morávamos no litoral norte. Eu vim pra cá em 1988. A gente tava no circo do meu tio. Lá em São Paulo. Lá em Santo André, por aí. Então segunda feira era Café. Nisso foi indo, foi indo, foi morrendo. O Café foi parando. A gente foi se distanciando de circo. E outra: não tinha essa força de vontade que eu vejo hoje. Não tinha. Sabe aquela coisa? Era um falando mal do outro, que o outro roubou não sei quem, que o outro pegou a mulher de não sei quem, que o outro… Então aquilo vai desgastando, sabe? Coisas ruins. Isso foi me distanciando do circo. E a chuva… O que aconteceu hoje aqui de estar chovendo. Nossa senhora! Isso aí era direto. Você já imaginou vinte e poucos anos acontecendo sempre isso? Isso vai desgastando a gente. Nós já cansamos de passar aperto, do circo cair! Você está na barraca, a barraca cai em cima de você. Isso vai desgastando. É pernilongo. Vai quicando em praça ruim. E quando você vai estrear o circo vem um vizinho lá e reclama, aí vem a prefeitura e te embarga. Isso vai cansando de um jeito que só quem está no circo que sabe. Acaba a luz ou o show que fala que vem, marcou pras 21h e não vem. Então isso vai acabando com… Isso vai… Quando nós viemos pra cá, pra praia, encontramos um bairro legal, gente legal, uma coisa diferente e mais pra cima. Nós paramos com circo na hora! Mas sem nem pensar muito. Por mais que eu sinta falta. Por mais que eu vá num circo e fique doido pra subir no palco. Talvez pudesse ser diferente pra continuar com o circo. Tanto é que nós tentamos várias vezes. Tentamos mudar o estilo do espetáculo. O tempo em cada bairro. Tentamos nos adaptar ao que estava acontecendo. Infelizmente, essa adaptação, ao invés de melhorar, teve efeito contrário.

Uma vez nós estávamos em São Paulo e do nada falamos “Vamos pro Maranhão?” Meu primo comprou uma lona. Uma lona grande.  Foi em 1984. Pegamos um caminhão. Nós colocamos 22 pessoas num Mercedes 11/13. Um caminhão só. O circo inteiro. E tinha o globo da morte, tinha a lona dele, tinha um circo de 30, redondo em cima também. E o caminhão foi estourando no meio do caminho. Estourando pneu. Nós dormimos na estrada. Era um caminhão pequeno. 11/13, trucado. Era aberto atrás. Nós fizemos uma gaiola dentro. O material foi em baixo, colocamos uns empanados e umas tábuas em cima, e cobrimos com a lona e ia viajando. Os homens iam urinando. Homem é mais fácil. Mulher urinava na bacia, na viagem. E jogava pra fora. O caminhão veio parando. Olha, pra você ter idéia, de São Paulo ao Maranhão nós levamos 22 dias pra chegar. Que é feito em três. Eu tinha catorze anos na época. Nós ficamos um ano lá. Só trabalhávamos por aqui. Geralmente era interior de São Paulo. Era São Paulo. A idéia sempre foi São Paulo. Eu acho que nós só saímos de São Paulo mesmo pro Maranhão. Foi antes da banda. Naquela época eu ainda tinha a ilusão ainda. Eu fazia a mesma coisa de sempre lá no Maranhão. Me apresentava com meu pai e fazia tudo que dava, o que desse pra fazer.  Só que tinha mais gente, eu era mais moleque. Eu só brincava e subia lá e tocava bateria. Não era como foi depois que o pai fez o circo dele. Depois que o pai fez o circo, apertou mais. Aí, ou eu fazia ou não tinha outro pra fazer. Eu comecei a crescer. Eu comecei a falar: “Já tenho 16, já tá na hora de fazer alguma coisa.” Eu comecei a pensar: “Porque eu não fiz isso? Porque eu não aprendi esse número?” E então entrou pra mim a música. Eu me afastei e fiquei quase cinco anos tocando na noite.

Não pensei em procurar a Piolin de novo. Nem pensava mais nesse lado de circo. Pra mim eu nem sabia mais que existia escola de circo. Quando saí da Piolin por causa da viagem do meu pai mesmo… Eu não voltei porque o que me prendia muito era a saudade do meu pai. Esse fato de ser em São Paulo a escola e a gente ficar mais pro lado de Campinas, era muito cansativo. Eu não via meus pais. Eu sempre fui criança de pedir bênção pra dormir, de dormir no colo no meu pai. Isso pra mim… é de lei. Não posso perder isso. Então não continuei no circo da Amercy por isso mesmo. A falta dos meus pais. Dava saudade, eu nem pensava em circo. Se você for colocar na balança, adeus circo. É o meu pai. Essa distância do meu pai que foi… Mas se dependesse da Amercy eu tava lá com ela até hoje.

Hoje vocês estão aqui e você não sabe o quanto foi bom de ver o meu filho querer pegar um malabares e aprender. Ele tá me enchendo o saco pra eu ensinar ele a fazer rola. Eu estava olhando ele fazendo parada de mão ali. Coisa que eu fiz muitas vezes e caí muitas vezes. Então pra mim… Eu adoro circo! Eu acho que era o que eu precisava agora, saber que o circo existe. Porque pra mim já tinha morrido. E eu acho muito legal o que eu vejo vocês fazendo. Então, lembra o que eu te falei que a gente tentou achar meios?  O que vocês fazem é uma mistura de não sei o que, aonde vocês foram aprender aquelas? No fundo eu fico boquiaberto porque eu acho tão pra cima! É! Mas é muito diferente do que a gente fazia. O estilo, o jeito, vocês são muito diferentes. Eu acho muito legal. E vocês não estão deixando morrer. Isso pra mim é… Sabe? Eu to ouvindo falar assim: “O circo ta aí de novo!” Quando eu vejo o carro de som passando. Carro de som não. Carro de propaganda. Vai falando, anunciando, me sinto com dez anos de idade! Então, pra mim é muito importante isso aí. É diferente o estilo, o jeito. O jeito de falar, o jeito de conduzir o espetáculo. A gente entrava, fazia o número e saía. Aí o apresentador se virava para tentar animar. Vocês são os apresentadores, vocês são os animadores, que eu acho mais simples. Entendeu? A gente entrava, fazia um número de repente até mais difícil do que o que vocês fazem, só que não ficava aquela coisa mais simples que fica mais fácil. Deu pra entender? Você colocava um prédio na boca. Mas vocês vão lá e colocam um grãzinho de arroz e sai mais fácil. Esse que eu acho o lado mais simples de vocês fazerem, mas até mesmo mais educado. Mais direto também. Mais interativo. Vocês estão ali e o pessoal está entendendo. Não precisa por lá um globo da morte no queixo. O jeito de falar às vezes é mais fácil. Que eu acho legal de vocês. Tá ensinando, tá mais educativo. Eu acho legal, um jeito mais escrachado com…

Meu pai sempre foi palhaço. Desde moleque. Nós já tivemos problemas de morte e meu pai subiu no palco e trabalhou do mesmo jeito. Eu aprendo isso na escola? Isso eu sinto no circo. Que o circo me dava muito isso, lições de vida. Não falo números. Falo lições e lições e lições. Como teve um caso aqui, e você levantou, e sorriu, e não sabia pra onde estava andando. Aquilo pra mim! Isso eu sinto falta no circo. Essas besteiras. Agora, acho que praticamente é isso. O que me ensinavam fora do palco. Como você se virar, como você levantar a energia, como você se adaptar pra… Isso eu sinto falta no circo. Ou você aprende ou você… dança! …ou você aprende. Nesse sentido eu sinto falta do circo. Hoje é como se eu tivesse morrido, minha vida foi totalmente fora do circo. Eu não sei nome de pessoas, como é que tá… Eu tava dentro do circo, mas eu não… não usufruía disso, sabe? Eu via, mas não enxergava. Estava no circo, morava no circo, mas não procurava aproveitar, tirar… absorver alguma coisa daquilo. Não… Era tão natural pra mim. Tudo. Tudo que acontecia era natural pra mim. Mudar de um bairro pra outro, a dificuldade. O que eu mais me preocupava era o dia da estréia. Tinha que ir bem. Se não fosse bem no dia da estréia, não valia nada. Os números tinham que dar certo, o palhaço tinha que agradar, o som não podia falhar. E sempre falhava! Mas… Isso aí era demais, normal. Eu sinto muito do meu filho não saber. Eu mesmo não aprendi. Eu sinto falta disso. Agora quem será que foi o culpado? Será que fui eu? Será que foram meus pais? Foi o estilo de vida que eu tinha? Também não me preocupo com isso. Eu só falo que eu sinto necessidade de estar mais atualizado. E você acha que você saindo daqui eu vou procurar na internet? Não. Não vou. Falo porque eu me conheço. Eu sei que eu vou… De vez em quando dá uma loucura. Outro dia entrei e tinha quase duas mil mensagens. Eu não abria fazia mais de mês. Mas, esse contato que eu tive com vocês foi muito legal. Eu não sabia que tinha clave aqui, que fabricava clave. Eu sabia que lá no Café tinha na época, mas não sabia que tinha loja. Eu fui olhando o monociclo. Monociclo mais bem feito, coisa mais bonita. Eu fiquei boquiaberto. Quanto ao circo eu acho que sou vazio, porque eu morava no circo e não aprendi nada, não fazia nada.

A minha geração… Das crianças que nasceram em circo na mesma época que eu, acho que… basicamente, foram todas pro mesmo caminho. Foram saindo, saindo. De vez em quando eu encontro alguns primos meus, a gente começa a comentar, ninguém quer voltar pra circo, ninguém sente um pingo de saudade. Eu só voltaria se fosse outro estilo, outro jeito de circo. Aí sim. Um estilo mais dinâmico. Não aquela coisa parada que era antigamente. Você chegava num bairro, ia, fazia propaganda, todo mundo ficava o dia inteiro ali conversando. Não tinha aquela coisa todo mundo querendo fazer, todo mundo ensaiando, todo mundo… Na hora de subir no palco, era todo mundo correndo! Sabe? Você tá no palco ali, tinha que apagar uma luz, você tem que pedir “Ô fulano de tal, vai lá, apaga a luz”. Isso me incomodava muito, eu sou meio perfeccionista. Não tá vendo a luz acesa? Se eu rodasse com um circo em que todo mundo tivesse a força de vontade – não é puxar o saco não – como eu vejo vocês ali! Apesar de que vocês precisam amadurecer. Mas, se fosse montar um show daquele estilo de vocês, com a vontade, com esse espírito, essa cabeça, com esse… Eu achava legal! Só que se fosse pra voltar lá para aquele circo que era… Não. Eu prefiro trabalhar aqui. Adoraria se meu pai fizesse uma escola de circo aqui. Meu filho ia fazer aula! E com certeza meu pai não vai deixar morrer. Ele tá sempre cutucando. Vira e mexe ele está fazendo alguma coisa. E o que eu gosto dele é que aonde ele chega: é o Biriba. É o Biriba, é o Biriba, é o Biriba! Tem reunião lá com o prefeito, ele chega e o prefeito vem cumprimentá-lo. Isso eu não quero deixar morrer. Aqui, na Barra do Sahy, muita gente me conhece. Só que muita gente me conhece mais do circo. Aonde eu vou tem conhecido. Eu acho esse negócio de ser conhecido, de ser popular…  acho que eu gosto disso. Não vulgar, popular. Digo isso porque tem muitos caras de circo por aí que não valem nada. Que fazem tudo ao contrário. Bagunçam, chegam nas praças e… Eu vim pra cá em 1988, você acha que se eu não tivesse um pouquinho de bom senso ou de jeito de ser de homem? Eu sempre tive esse jeito de ser, mesmo moleque. Você acha que eu ia estar aqui de cabeça erguida, morando aqui?

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