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Entrevistas

Goya Cruz, entrevista realizada em 13 de julho de 2005

depoimento de Goya Cruz, concedido em entrevista realizada em 13 de julho de 2005

 

Sou Maria da Glória Ribeiro Cruz, nasci no dia 16 de maio de 1960. Eu sempre fui muito ligada nessas coisas de corpo, desde pequena. Comecei a fazer balé moderno com sete anos de idade, depois fui tocando a vida e com 17, 18 anos eu já fui fazer circo. Eu entrei na FAAP e logo depois eu soube que tinha essa Academia ali na Pacaembu. Eu fazia ginástica lá por causa da FAAP. Fiquei fascinada! E ao mesmo tempo eu comecei a fazer balé clássico e moderno. Fiz tudo junto. É isso. Hoje eu trabalho. Eu já trabalhei muito com a área cultural, sou formada em publicidade. Trabalhei um tempo com publicidade, na área de criação, trabalhei muito com fotografia, acho que durante uns 15 anos. Eu entrei na faculdade por causa da fotografia. Com 17 anos eu montei um laboratório em casa. Eu adorava fotografar e acabei entrando na faculdade e largando, mas hoje eu ainda trabalho com isso. E a minha trajetória se constituiu em trabalhar com fotografia e com a área cultural. Sempre mexi com o corpo, em toda a minha vida. E agora a cerâmica apareceu… Acho que em 1990, 88, 89, algo assim… foi que minha irmã mais velha estava fazendo de um curso de pintura, de baixa temperatura. Eu achei super legal, fiquei interessada e pensei “ah, vou fazer uma aula”. Fui fazer uma aula e eu achei que não podia ser aquilo. Porque estava tudo pronto para ser pintado. Eu era muito curiosa, quis saber como é que se faz aquela peça. Fiquei ‘parada’ na ceramista, que tinha um super ateliê, e eu comecei mesmo a fazer peças de cerâmica. Logo a primeira peça que eu fiz foi comprada numa exposição que aconteceu… Então, eu entrei nessa, e acho que tem muito a ver com o corpo.

Como eu já dava cursos de Artes Plásticas, porque eu também passei por essa área, comecei a juntar o corpo com o barro. Dava aula de cerâmica para crianças e acabávamos numa aula corporal. Com a relação do barro mesmo, ergonômica, do fazer. E aquilo de que o homem tem origem no barro. Eu fazia um trabalho de corpo, de pegar, de mexer, de reconhecer o material ou reconhecer o outro, de olhos fechados. E era bárbaro. A compreensão de criança, do adulto, de todos. E eu não deixei de fazer o meu trabalho de corpo ao mesmo tempo em que eu trabalhava profissionalmente com essa parte de fotografia e imagem. Eu estou na Folha [de São Paulo], trabalho basicamente com imagem, fotografia, um pouco de publicidade, um pouco de tudo de conteúdo. Agora me inclinei pra cerâmica e ao mesmo tempo tem muitas atividades que eu faço com o corpo. Minha vida é isso hoje.

Eu fiquei sabendo da escola de circo, a Piolin, porque eu fazia aula de educação física lá no Pacaembu. Em 1978 eu fazia faculdade de publicidade na FAAP e todos os cursos, naquela época, tinham aula de educação física. A FAAP era bem menor, era só aquele prédio principal do vitral. E a gente fazia aula de educação física lá no Pacaembu. Acho que em um dos intervalos eu fui andar e vi as aulas de circo. Eu fiquei fascinada, achei bárbaro! E ao mesmo tempo eu comecei um projeto. Como eu fazia fotografia e achava muito interessante o circo, eu fiz um ensaio fotográfico num circo que estava ali perto da Marginal, o Circo Vladivostok. Isso foi em 1978 também. Eu me interessava pelas pessoas do circo, nunca gostei da parte dos bichos, sempre das pessoas. Eram pessoas interessantes, como elas se vestiam… Fiz um ensaio com uma família, em p&b. Eu ia todos os dias para lá, não pegava o espetáculo, só eles vivendo ali… Nesse ano eu já fazia circo. Então eu fiquei muito envolvida com isso. Fiz fotos maravilhosas, fiquei sabendo como é a história, como as crianças estudavam, como é que era escolhido quem que ia se apresentar. E, sempre, a família inteira se apresentava. Eu achava isso fascinante. Todos tinham uma função, isso é muito legal na família circense. E todo mundo que fazia circo naquela época virava meio que uma família mesmo. Esse ensaio fotográfico eu apresentei como trabalho na FAAP. Depois deixei guardado. Usei algumas fotos no evento da Palhaçada, no Centro Cultural São Paulo. E minha ideia no primeiro trabalho era postar lá no circo, mas eles foram embora. Eu ampliei e as fotos, fiz a ampliação e tudo, eu ia levar pra eles as fotos, mas foram embora…

Os personagens… As pessoas que faziam aula na Academia Piolin. Eu, na verdade, não tinha muita habilidade. Eu andava de bicicleta. Fazia todo o malabarismo da bicicleta: de frente pra trás, de costas. O Roger que dava aula de bicicleta e de palhaço, que e eu não gostava. Eu fazia cama elástica, estava começando a fazer trapézio. Fiquei um tempo treinando muito mais a bicicleta. Tinha essa coisa do equilíbrio que eu sempre fui muito boa, eu sempre andei de moto, acho que veio daí… E nessa época eu comecei a fazer balé clássico, pra fazer moderno. Era muito legal, eu fazia balé clássico num dia e no outro dia eu ia pro circo. E eu vivia fazendo isso. Eu ia pra faculdade… depois, no meio do ano eu mudei pra noite, então, eu fazia de manhã, assim: o circo, o clássico, e foi muito bom. Fui entrando na área cultural por causa disso. Eu já gostava dessa área, da arte.

Em 1982, 80… eu já não estava mais no circo. Acho até que a Academia já tinha acabado, não sei. Eu entrei no Centro Cultural e promovi um evento circense. Reencontrei algumas pessoas que fizeram Academia comigo. O Marcos Favaretto, que fez teatro. Nós dois entramos no Centro Cultural e começamos trabalhar na área de audiovisual, com fotografia. E naquela época, em que o Ricardo Taques era o diretor, tudo era bem aberto. Ele era muito aberto e qualquer departamento podia propor eventos. E como eu e o Marcos gostávamos muito de circo, resolvemos propor a semana da Palhaçada para a semana da criança. Chamava A Palhaçada, eu tenho até hoje o folheto. Bom, então, chamamos o Zé Wilson, fizemos uns encontros lá no Ponto Chic, que foram bárbaros! Fizemos entrevistas. Tenho fotos com o Arrelia, Torresmo. Fomos lá na Casa dos Artistas, que funcionava lá na Vila Olímpia, pra ver toda a parte de pintura de circo. A Casa dos Artistas era na Rua Casa do Ator. A proposta do evento era uma coisa muito maior, era cultural mesmo, com profundidade. A gente comprou tinta circense pra fazer a exposição no Centro Cultural. Pegamos emprestado do Arrelia a cartola dele, com a bengala, a roupa, tudo. Foi maravilhosa a exposição toda. O Gal Oppido fez até um ensaio sobre o circo, eu acho que até fotografou a Academia. Ele fez um trabalho muito grande com circo lá, várias vezes.

Fizemos circo, dávamos workshops lá, tinham aulas, o Zé Wilson chamava aquele pessoal todo pra fazer, a gente tirou fotos… Só esse encontro com os circenses ali no Ponto Chic já era muito bacana. E tinha a Associação Brasileira, tinha gente que dava aula lá na Academia. Uma delas era a Amercy. É isso. Também lembro muito bem de uma menina que andava na bola. Eu adorava ela. Ela tinha um cabelão preto, que parecia a Madame Mim, a Maga Patológica, essas figuras assim. Eu acho que era a Verônica, com uma bola com umas estrelas azuis? Deve ser. Pra mim foi uma experiência super bacana. Fiz aula na escola por cerca de um ano e meio, dois anos…

Para entrar eu me lembro que teve uma entrevista, eu lembro que ele tinha uma salinha, era super profissional. Então, “tudo bem? de onde você é?” Tinha uma avaliação, não tinha nenhum médico. Mas assim, a primeira coisa que eu achei bárbaro: era obrigatório usar uma cinta, pra segurar os órgãos.  Usei durante anos, tipo um contensor. Lembro que pra, você fazer as aulas, tinha que ter alguma experiência de corpo e eu já tinha feito balé, e ainda estava fazendo… Daí fazia aquela carteirinha básica que tinha a cara do Piolin, e que eu guardei anos, mas acho que há uns dez anos eu joguei fora. A carteirinha tinha a carinha do Piolin, assim… Foi super legal! Eu achei interessante entrar em contato com essas pessoas. Eu vinha de uma classe média, morava no Alto de Pinheiros, mas sempre fui muito rebelde, muito de outra linha mesmo. Eu fui a única de casa assim… Nem minha irmã, que fez Letras e fazia dança também. Ela que fazia dança comigo desde pequenininha, desde os três anos, pequenininha de tudo. Então, pra mim era muito bacana, sempre alguém assistia, e achava super legal, gente da FAAP. O que eu achava legal era isso: era bem organizado, não era pago, não sei até hoje como que se pagava ali. Eu nem sei como que era a subsistência, se o Pacaembu pagava, não sei como é que era. Mas eu achava super organizado, super! Não tenho problema nenhum pra relatar. Eu acho que aquelas pessoas que fizeram o circo naquela época, alguém que tenha brigado, efetivamente, o Zé Wilson ou qualquer outro. Toda vez que eu encontro o Zé Wilson parece que foi ontem. Eu sou uma discípula, sabe? É muito querido, sempre. E eu acho muito interessante, engraçado, pra mim é muito fascinante ainda, o circo, a família do circo. Aquela casinha do Zé Wilson ali do lado… Eu acho muito louco aquilo! Pra mim é muito louco, eu acho muito legal. Até hoje, assim, eu já trabalhei com outras coisas, com eventos e tudo…

Sobre aulas, vou falar do Roger. Eu chegava e, se ele estava treinando alguém, eu ia fazer cama elástica ou ficava fazendo algum treinamento com a Amercy. A Amercy ajudava a fazer parada de mão. Eu fiz ginástica de solo na escola, quando era pequena, eu já tinha um histórico de gostar de fazer ponte… Era muito solto, lembra um pouco como é aqui, mas acho que ao projeto Cidade Escola Aprendiz falta um pouco mais de disciplina. Pelo menos ali, no Vitrine. Não sei como são as outras aulas, mas eu acho que falta disciplina. É legal essa coisa toda de como era a Academia, meio livre, só que eles eram super disciplinados! Eu achava legal isso. Não era pago, tinham várias pessoas e todo mundo chegava no horário que fosse e desenvolvia sua atividade. Assim, tinha alguns horários marcados, mas era um intervalo de tempo, por exemplo “entre duas e quatro horas da tarde você pode vir”. Mas, era muito organizado! Não ficava tudo solto. Tinha começo, meio e fim pra cada atividade que você estava fazendo. Então, a professor te pegava “então venha fazer”, a Amercy organizava grupos para fazer as acrobacias, ficava uma fila e todo mundo fazendo. Depois te orientavam, perguntavam o que você faria em seguida “você vai pra onde agora?” Eu achava que era interessante essa disciplina. Daí, como eu gostava da bicicleta, eu chegava e o Roger vinha empurrando a bicicleta e falava: “agora você vai pegar ela andando” e eu achava o máximo. Queria pegar o cavalo andando! Então a bicicleta vinha andando, eu vinha, vinha, vinha, pegava ela, montava no pedal, normal, e já passava para outro lado. Eu achava o máximo! Ficava de costas, virava, parecia mágica. E eles levavam a sério, isso que eu achava bacana. Mal chegava e você já pegava uma habilidade. Não sei se era porque as pessoas que iam já tinham uma facilidade, mas eu não via nunca ninguém com dificuldade. Talvez porque havia uma certa seleção, eram sempre pessoas que tinham uma facilidade com o corpo. E era engraçado porque, de repente, estava todo mundo ao mesmo tempo fazendo coisas e tinha um picadeirozinho onde ficavam as bicicletas, tinha o trapézio, era como se fosse um grande ginásio de ginástica com vários aparelhos. Só que era muito… não é hilário… Era até insólito! Porque de repente tinha um cara do seu lado fazendo contorcionismo, a outra passava com a bola dela pra lá e pra cá, não sei quem fazendo mágica, era legal!

A relação com os professores era super boa, mas eu acho que não tinha uma… Pra mim aqueles caras que davam aula, eles eram de circo, então eu tinha um respeito. Eu vinha de uma outra história, eu era uma menina de classe média e percebia que aqueles professores eram circenses mesmo, eles tinham uma trajetória, uma vida circense que vem de outra… Que não é a minha história, então eu tinha muito respeito, só. Eram bacanas, mas era uma coisa um pouco distanciada. Não era como a gente tem aqui. Eu sou professor e você é aluna e tudo bem, a gente troca… Por exemplo, a Amercy era uma pessoa distante, era uma senhora pra mim. E ela era super bacana, mas eu tinha um respeito. Ela tem uma outra vida. O Roger era uma gracinha, o próprio palhaço, mas era respeitoso. Eu não tinha uma relação, não dava pra ter uma relação. Eles estavam lá e existia esse distanciamento. Eu respeitava porque era outra formação, outra cultura, outra coisa… que eu não entendia. Isso de ser de origem cigana, húngara, imagino que seja algo assim.

Naquela época, quando o Erasmo Dias invadiu a PUC eu voltei correndo pra casa. Era lá na PUC e eu morava no Alto de Pinheiros. Era muito efervescente, era demais. Eu achava que era isso, a vida era assim, as coisas tinham que ter os contrastes. Eu achava um supercontraste e eu gostava disso. Eu estava numa FAAP que era totalmente burguesa e fazia circo, então isso sempre me agradou, eu sempre fui do contrário. Pra mim isso era a minha vida, tinha total conexão com quem eu era e com quem eu queria ser. Obviamente, não tinha ninguém da FAAP fazendo, era só eu. Eu não lembro de ninguém fazendo. Era porque era o meu canal, eu era assim, sou até hoje. Pra mim era específico de quem tem uma linha diferente, e eu achava o máximo. Você perguntou “O que você acha?” Eu achava o máximo dentro do estádio do Pacaembu ter essa escola de circo… Eu achava o máximo, porque a gente vinha de uma efervescência política, eu vinha, pelo menos, participei de movimentos estudantis. Eu com 17 anos fui votar por um partido operário, eu sempre fui muito rebelde, eu ia pros movimentos todos. Com 17 eu participei, em 1977 do movimento estudantil. E a Piolin foi o precursora. Acho que foi o que deu o start pra Nau de Ícaros, os Fratelli, pra esses todos que vieram depois. Foi uma nova forma de integrar o circo para a gente poder se familiarizar com a arte circense. É como eu falei, quando eu tive contato eu achava que todo circense não era da minha praia, eu tinha respeito. “Eles nem vão entender a minha língua”, sabe? Não sei de quem foi a iniciativa, mas acho que eles deram um start nessa arte de uma outra forma.

Acho que hoje está caindo de novo. Não vejo muito trabalho porque a Nau, ela trouxe um monte de coisas, Pia Fraus também, e outros que trouxeram acho que na década de 1980 começou a efervescer isso até 1990, e de 2000 pra cá eu não vi muita coisa. Eu vi, até conheci há pouco tempo um cara que faz parte de um grupo de circo. Eu não estou tendo muito contato, na verdade, não sei se falta divulgação. Eu acho que na década de 90 teve muita divulgação desses trabalhos. E eu acho que é realmente uma arte, como dança, os personagens circenses, não os bichos, mas os personagens… Falo isso sobre os bichos porque o trabalho com bicho me incomoda. Nunca gostei de ver o bicho lá imitando, fazendo o que o homem quer. Eu acho que o bicho merece muito respeito. Acho que se tivesse quem bancasse, fazendo matérias quando o circo chega e mostrando como os animais são tratados, poderia ter outra imagem. Só que eu nunca vi de outra forma. Eu fui num circo fazer aquele ensaio fotográfico. O bicho, coitado, eu via no olho dele que ficar amarrado naquela gaiola e depois vai lá com o chicote. É pavlov mesmo, é condicionamento…  Pavlov é aquela experiência antiga que fizeram, testada com condicionamento de animais, por exemplo, você fala “vai” e está condicionando a ir lá pra frente. Você fala pra um cachorro “pega, vai buscar” e ele vai e traz, ou você fala… você não quer que o bicho vá lá e então, quando ele vai, dá um choque nele. Na primeira vez ele vai, na segunda não, é o condicionamento. E o bicho é isso, ele só obedece porque na primeira ele levou alguma coisa, na segunda ele não vai mais, então ele vai fazer o que você quer. Então, o domador parece mágico “olha! esse bicho, o que ele faz, ele só fica dentro desse quadrado se eu quiser”.

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