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Entrevistas

Cássia Venturelli, entrevista realizada em 20 de fevereiro de 2004

depoimento de Cássia Venturelli, concedido em entrevista realizada no dia 20 de fevereiro de 2004

Eu nasci em Andradas, em Minas Gerais, em 1960. Eu, desde criança, fazia circo em casa porque meu pai era ator e gostava muito de circo. Toda vez que chegava um circo na cidade, ele me levava. Depois, ele abria o cesto de roupa suja, espalhava toda a roupa no chão para amaciar porque não tinha colchonete, jogava um lençol em cima e me ensinava contorção e tudo. Então eu gostava de circo desde criança, e de teatro. Fazia teatro na minha cidade, teatro amador, aí vim para São Paulo, fiz Macunaíma, aí comecei fazer teatro infantil e nunca mais parei. Chegava a fazer três, assim, quatro espetáculos infantis diferentes por ano, ficando em cartaz. Fui fazer circo e adorei o circo! Deu uma mudada no meu estilo.  Depois eu fui fazer, voltei, no “Ubu” fui fazer circo, aí começaram a me chamar para circo, circo…

Eu soube da existência da Piolin no final de 1978. Mas ninguém sabia direito informar como é que era, onde é que era, essas coisas. Eu já tinha ouvido falar por alto. Eu morava com a Salete, que é uma atriz também. E a Salete conseguiu as informações de que era de graça e que era no Pacaembu. E a gente combinou de ir e fomos até lá. Quando nós chegamos, fiquei super chateada de saber que já funcionava há um ano! Se eu soubesse tinha ido antes. Desde criança eu queria fugir com o circo, ia assistir circo na minha cidade e, se eu soubesse direitinho já estava lá, já tinha… Até hoje ainda me arrependo… E se eu tivesse feito a Piolin desde o começo!?

Em 1979 é que eu descobri que era lá no Pacaembu. Fui até lá e era numa quadra embaixo da escadaria, onde tem a arquibancada. Tem a escadaria e embaixo duas quadras bem grandes. Lá tinha os colchonetes e os aparelhos. Eu cheguei e enlouqueci!  Eu já adorei! O pessoal estava jogando malabares e a professora Zoraide Savalla estava dando aula de contorção. Eu nem estava com roupa apropriada nem nada, mas quis mostrar para ela o que eu também fazia. Então, fiz envergada à frente, envergada atrás, estrela, consegui abrir espacate, mostrando para ela quem eu era e que eu também já fazia alguma coisa. E assim já foi uma simpatia de imediato. E cada professor queria ter mais e melhores alunos, então ela me chamou de canto e falou: “Olha, no circo tem muita coisa e você pode fazer muita coisa aqui dentro, mas desse jeito você não aprende nada. É melhor você ficar com uma ou duas coisas e se dedicar à elas porque assim você vai progredir, você vai fazer número.” Porque a preocupação da pessoa de circo é que você tenha um número. Diferente da gente que é ator, que quer aprender o maior número de coisas diferentes para usar no teatro, para eles não, é uma coisa mais específica. Você pega um aparelho e você vai trabalhar nele, vai aprender a fazer aquele aparelho. Eu assumi o compromisso com a Zoraide que eu ia fazer contorção e foi o que eu segui fazendo. O Roger viu que eu era dedicada e apareceu perto de mim com a bicicleta. Falou: “Senta aqui”. Me incentivou a andar na bicicleta. Uma bicicleta diferente. E começou me ensinar a bicicleta, ele mostrou o que ele fazia e o que podia ser feito e tudo, e eu gostei à beça da bicicleta. Ele e a Zoraide eram bem amigos e combinaram: “Olha, você quer fazer bicicleta? Então faz essas duas coisas: contorção e bicicleta.” E eu adorava as duas coisas, eu topei. Passei a fazer contorção e bicicleta. Isso durante 1979, 80. Eu participei da primeira apresentação da Piolin, que foi lá no Pacaembu. Uma apresentação grande, muito bonita, tinha muito aluno. Pra mim foi uma surpresa porque, eu e minha irmã achávamos que ia ser como uma aula. Nós não fomos tão preparadas. Quando chegamos lá, todo mundo estava com roupas cheias de pedras, bordadas… A gente ficou perdida! Então a Audrey, uma pessoa que é a essência da Piolin, emprestou roupas pra nós. Eu ia fazer a bicicleta, mas eu tremia tanto! Tinha muita gente assistindo, muita gente se apresentando, tinha televisão, tinha tudo! E olha que eu já fazia teatro. Comecei a fazer teatro ‘semi’ profissional em 1978. Em 1979, eu estava em cartaz no Paiol, lá na Amaral Gurgel. O Teatro Paiol agora tem um outro nome. Eu estava fazendo espetáculo infantil. Só que fazer teatro era uma coisa, equilibrar numa bicicleta, girar e fazer ‘pé na cela’… Eu sei que na hora eu desisti. “Não vou, não vou…” E o Roger falou: “Puxa, mas eu tenho várias alunas de bicicleta e eu escolhi você. Agora todos os professores vão ter um aluno e eu não vou ter nenhum?”. Eu peguei e fui! “Então vamos!”. Ele foi comigo lá no centro, lá na arena para eu fazer. E eu consegui fazer! Ele ficou surpreso porque eu consegui fazer até algumas coisas que no ensaio eu errava e na hora eu não errei. E tinha um ‘pé na cela’ que eu fazia e abria a outra perna como se fosse um espacate, ficava parecendo um avião. E eu girei uma, duas vezes, eu tinha que descer para agradecer e eu não conseguia descer, tinha um corredor que ia dar lá no camarim, eu peguei e fui! Eu fui indo embora e o povo aplaudindo achando que era daquele jeito mesmo! Eu vi que não ia conseguir descer e fui embora. O Roger puxou aplausos para mim e, anos depois, a gente lembrava disso e ria! Que a minha apresentação teve um final criativo. Mas, com o medão que eu passei depois nem conseguia dormir de noite por causa da emoção de ter apresentado uma acrobacia. De ter sido a única e não ter desistido, da minha coragem de apresentar. Nesse dia eu percebi que a emoção que você sente para entrar no espetáculo do teatro, que é muito forte também, é uma, mas a emoção do circo é maior ainda! Porque implica em risco de vida, implica em um grande vexame de você cair. No teatro você sempre tem um jeito de improvisar, a platéia não percebe, se tem um branco algum colega pode mudar, e no circo você está lá ao Deus dará! Ou você faz ou não faz. Eu gostei, aí que eu apaixonei mesmo. E eu fui procurar na Academia Piolin uma ferramenta para o teatro porque eu não tinha a intenção de me tornar uma circense, sempre tive isso claro na minha cabeça. Eu queria fazer circo porque eu queria fazer palhaço e lá na Piolin eles não davam moleza para palhaço não! O primeiro professor de palhaço que teve foi o Gibe. Cheguei a fazer algumas aulas com ele. Ele ensinava ‘cascata’, ‘claque’. Claque é aquele tapa do palhaço e cascatas são os tombos que você faz com barulho, sem se machucar. Mas, o Gibe saiu e não teve professor de palhaço por um tempo, porque eles achavam, com razão, que o palhaço precisa aprender a fazer circo antes. Fazer acrobacia, fazer os aparelhos. Pra não ser uma coisa fácil, pinta a cara e é palhaço. E então eles puxavam pra esse lado. E eu, acreditando nisso, treinava muita acrobacia e muita bicicleta, mas sempre querendo fazer o palhaço. Depois de um tempo o Roger assumiu a aula de palhaço. Ele ensinava a gente a maquiar, ensinava algumas esquetes. Ele sempre falava para anotar o que ele dizia, porque você pensa que a esquete é fácil e acha que não vai esquecer… daqui há um mês você não lembra. E a gente fazia caderninho de esquete e tudo. O meu eu perdi, depois teve uma época que eu queria muito fazer esquete e não tinha, porque tinha esquecido.

Quando a Piolin fechou, ficou muito tempo sem existir outra escola de circo. Na hora que ela parou, aquela geração que tinha conseguido assimilar alguma coisa e aplicar foi para circo trabalhar. O pessoal de teatro ficou meio sem saber o que fazer para dar continuidade. Depois de anos foi que a Picadeiro coincidiu com a época do “Ubu”. Por causa da peça a gente foi fazer a Picadeiro para aprender de novo, mas a raiz foi toda na Piolin. E na Piolin tinha algumas pessoas muito interessantes: O Breno Moroni, que faz umas novelas de vez em quando, foi uma pessoa muito especial lá dentro. Porque a Academia Piolin, ela era uma academia mesmo: não tinha a lona, tinha os aparelhos todos, uma forma rígida de ensinar. Tinha a Amercy que tomava conta e era um carrasco! Você tinha que ter um suspensor, que era uma calça de elástico pra você se proteger. Quando você chegava, ela já fazia você mostrar. Se não estava de suspensor “vai embora!” Não podia jamais deitar para descansar! Dar uma deitada e relaxar, não, tinha que fazer, fazer, fazer e era aquilo mesmo. Os rigores, os moralismos do circo, das famílias circenses… Era bem rígida a coisa. Não era solto igual ator. A Tânia Alves fazia nessa mesma época que eu fiz. Também o Gésio Amadeu também fazia, era um ator muito bom ele. E essas pessoas faziam para teatro, mas não tinha aquele ambiente do teatro que é mais à vontade, mais descontraído. A necessidade do relaxamento… Não tinha isso não! Isso aí era frescura. O negócio é “vamo lá!” Era militar.

Daí um dia apareceu uma pessoa lá dentro do circo e parou a aula. Todo mundo parou para ver quem era. Era o Breno. Ele entrou de monociclo, nas costas ele tinha uma mochilinha e na mochilinha tinha um macaquinho. Ele entrou andando de monociclo. Ninguém se interessava por monociclo até então, e ele deu a volta inteira na quadra! A aula parou! Todo mundo que estava na quadra parou para ver quem era aquele louco, de cabelo diferente, andando de monociclo com aquela mochilinha. Ele tinha chegado da Europa. Tinha morado lá muitos anos, e tinha se envolvido com o pessoal de circo de lá que fazia essas loucuras todas! Tinham outra linguagem. E isso ele trouxe para a Piolin. Depois que o Breno chegou a Piolin mudou!  Mudou de cara, mudou de jeito. Ele formou um grupo de teatro, como uma troupe, com algumas pessoas. Eu cheguei a treinar um ou outro dia com ele. Ele alugou ou emprestou o Oficina, não sei. O Zé Celso emprestou para ele, o Oficina era o velho, antigo, e ele virava a madrugada inteirinha ensaiando e fazendo improviso. A partir dali, a Piolin passou a ter uma troupe com uma cara diferente, com umas maquiagens brancas… Uma cara branca que ninguém tinha ouvido falar aqui no Brasil, umas maquiagens meio doidas, bem diferentes. E ele ensinou o pessoal a fazer pirofagia. Foi um diferencial. Isso aí foi 1979 inteiro. Eu estive lá. Teve uma apresentação porque a Academia Piolin ganhou um terreno no Anhembi e uma lona. Nós fomos lá no terreno, sem a lona ainda, e fizemos um show ao ar livre em cima de um caminhão. Abaixaram assim e o caminhão virou um palco. Tinha uma banda e a gente fez isso como um grande show de agradecimento. E estavam os políticos, o tal do Colman, que foi quem tocou a Piolin. Nós fizemos essa apresentação, ganhamos a lona e as aulas de circo passaram a ser feitas lá. Eu cheguei a fazer por quase um ano ainda, depois parei porque fui fazer a “Revista do Bixiga”. Era um trabalho que o Abujamra tentou muitas coisas em uma, a gente tinha uma porção de coisas, aula de dança e um monte de aulas. E eu não pude dar continuidade na Piolin.

Mas eu levei algumas pessoas também, como a Regina Helena, o Gil, que foi um pouco depois para lá mas era da mesma turma. Pessoas que freqüentaram a Piolin depois que ela já estava no Anhembi com a lona e tudo. Mas não era tão legal, tão gostoso, como era no Pacaembu. Todo mundo que fez as duas que você conversar, vai dizer que a época do Pacaembu foi uma época de muita criatividade, passou por lá muita gente interessante, muito ator de teatro, gente muito legal da época que ia lá para aprender, pra reciclar, para treinar, então foi isso… Foi essa fase…

Não sei por que não era tão legal depois… Acho que saíram muitos alunos porque era longe. O Pacaembu era muito próximo. Era no centro de São Paulo. O pessoal de teatro, a Tânia Alves e esse pessoal, na época eles faziam “A Ópera dos Três Vinténs”, do Chico Buarque, no teatro São Pedro, ali na Barra Funda. Então era muito fácil, estava tudo à mão. Quando foi pro Anhembi ficou mais longe e diminuiu bastante a freqüência desse pessoal mais cabeça, mais maluco. Já não iam com tanta assiduidade. Mas, apareceram outras pessoas e foi a época boa de outras, né? Esse pessoal, a Nina, o pessoal que eu conheço freqüentava mesmo no Pacaembu. Mas a escola seguiu por um tempo, depois foi entrando em decadência até que um dia parou. Eu acho que eles começaram a atrasar os pagamentos dos professores… E os professores continuavam indo por amor à arte, por consideração aos alunos… Lembro de um comentário de que havia professor com salário de seis meses atrasada, que não recebia. Como eles eram circenses, alguns trabalhavam no fim de semana e sobreviviam disso, mas outros… Até porque, normalmente, professor de circo já não faz mais número. Eles viviam daquilo, da escola, mesmo assim iam lá dar aula sem dinheiro! Foi indo, foram diminuindo os alunos e os professores foram desanimando. A lona foi rasgando e não tinha uma manutenção. Acho que o descaso dos políticos na época… Acabou fechando mesmo a escola.

Eu parei de fazer aulas lá assim, fui diminuindo porque comecei, cada vez mais, a fazer teatro. Em 1979, que foi o ano que entrei na escola, eu fiz três espetáculos infantis diferentes. Fazia no fim de semana. Então teve a “Revista do Bixiga” que era muito legal! Lá no Cassilda Becker. A gente tinha ensaio todos os dias, de tarde e de noite. A tarde inteira e a noite toda. Então, tinha oficina, dança, culinária, aula de canto, os ensaios. Era muita gente. A “Revista do Bixiga” tinha 20 alunos, atores novos, com 20 anos de idade em média. Os professores eram: Paulo Betti, Osvaldo Barreto, José Antonio de Souza, gente muito boa! O Abujamra… Aquilo despertou meu interesse e foi mais forte ali. Só que o que eu fiz? Eu levei para a Piolin algumas pessoas que abraçaram a causa do circo. A Regina, por exemplo, eu fui fazer bicicleta e ela nunca tinha visto. Fiz um número de bicicleta e ela viu, gostou, começou a fazer e hoje em dia ela faz muito melhor do que eu. Assumiu a carreira. Ela era secretária lá do projeto e aí ela descobriu o circo na vida dela, virou uma circense. Até hoje em dia, acho que ela tem quase 50 anos, ela e faz muito bem! Mudou a vida dela, que era uma secretária. Então, acabei sendo útil para algumas pessoas que eu levei. Mas, eu fui diminuindo… Mesmo assim, de vez em quando eu ia lá roubar uma aulinha. Mas, eu freqüentei a Academia Piolin por dois anos e pouco. Foi o ano de 1979 inteirinhos, sem faltar nunca. Eu era super ‘cdf’. Em 1980 eu freqüentei uns oito meses. Eu imagino que assim… Freqüentar que eu falo é ir todo dia. Isso foi em torno de dois anos. Depois eu ainda ia de vez em quando. Quando eu pegava um espetáculo que tinha circo e precisava treinar era lá que a gente ia treinar. Aí eu trabalhei com a Vicky Militello, com a Dirce Militello, que tinha a mesma linguagem, era de família de circo…

A Audrey dava o aquecimento geral. A aula era assim: você chegava e fazia o aquecimento. Um aquecimento legal, com aquelas coisas básicas de aquecimento. Do aquecimento a gente ia com o Savalla fazer o plinto, então primeiro você dava uma cambotinha, depois duas, salto leão, ia treinando aquele quipezinho de cabeça. Ele colocava o plinto no primeiro no caixote, depois dois, seguia no trampolim, três caixotes, quatro, e a gente ia… Isso com o Savalla era uma continuação daquele aquecimento. Depois que ele terminava, ele já falava “Agora vai lá!” Uns iam para a contorção, outros pra outro lado e cada um ia para o aparelho que estava treinando. O professor de trapézio era o sobrinho do Piolin, chamava Abelardo também. Ele não deixava subir, sentar, no trapézio se não fosse com a subida de barriga, que é aquela que você balança e arma a janela.É ‘oitava’ que chama agora? Você balança e sobre, pá! E precisava muito braço. Quando eu treinava, eu fazia isso. Enquanto eu não subi de barriga ele não deixou eu sentar no trapézio. A Amercy que ensinava corda indiana e também era uma coisa danada! Ela só deixava a gente subir. Não tinha essa de subir trançando a perna, não. Tinha que subir na força, no esquadro. E aí eu tinha que subir em esquadro todo dia, uma vez só por dia. Era o que a Amercy deixava fazer. Quando eu cheguei até a estafa, os oito metros, na força e no braço era para começar a ensaiar número. Mas ela ensinava mais aquelas alunas dela. Então era muito difícil romper esses melindres dos professores. Eu era aluna da Zoraide e do Roger, então, com a Amercy e com o Abelardo eu não tinha muita chance. Agora, o Roger, como era meu professor na bicicleta, ele passou a me ensinar palhaço também. E o Savalla. O Savalla eu fazia plinto, fazia saltos. Ele era irmão da Zoraide, da família Savalla, da Elisabeth Savalla da televisão.

A relação com os professores era muito legal. O Roger contava as histórias dele, da vida dele. Ele tinha dupla com o Pingüim. Quando tinha show, a gente ia e se deliciava vendo a dupla Picolino e Pingüim. Nossa! Uma coisa! Até estalava de rir! Eles eram muito engraçados mesmo. E era bem legal a nossa relação, era meio paternal assim. O Roger lembrava muito o meu pai fisicamente e eu e a minha irmã, a gente se apegou a ele por causa disso, que era tão parecido e tal. E era bem legal com a Zoraide também. Eu era muito magra, sempre fui muito bem magrinha. Mas quando eu fiz 18 anos eu dei uma engordada, parei de crescer e deu uma deformada no corpo, fiquei meio barrigudinha. Quando eu entrei lá, a Zoraide me fazia pegar no pesado mesmo. Um ano depois não tinha mais barriga, meu corpo já tinha mudado, tinha voltado a cintura. Por mim foi importante pra manter a forma também! Mas, era uma coisa de dormir pensando que amanhã tem aula… o circo! Fanatismo mesmo! Por gostar…

A Academia Piolin foi muito importante para mim! Para a minha carreira de teatro foi fundamental! Porque eu aprendi essas coisinhas de circo e depois, em 1982, eu fui fazer um espetáculo para uma campanha política e comecei a trabalhar com o Gil, retomei os trabalhos com a Nina, a gente passou a fazer pirofagia. Então, primeiro eu fazia de graça nas bandas, na Banda do Pirandello, na Banda Redonda. A gente ia e cuspia fogo de graça. Depois a gente começou a aplicar, a Piolin já estava fechada, a gente não tinha onde treinar, e a gente tentava puxar pela memória, tentava lembrar as esquetes e ia treinando malabares, já fazia o fogo… Teve uma casa noturna que pagava super bem. Foi uma época que a gente ficou bem de grana, a gente passou a fazer pirofagia. Quem sabia fazer alguma coisa de circo não ensinava em hipótese nenhuma. Assim, Breno era muito legal, o Luizinho era muito legal, a Verônica era muito legal, mas era fechadésimo. Eles formaram um grupo chamado “Tapete Mágico” e eles não ensinavam para ninguém, era um segredo entre eles. Mas o Tadeu ‘Come Terra’, que depois fez a escola de circo dele, entrou para o nosso grupo. Era o Grupo Eureka, eu, o Gil e a Regina. E ele passou a técnica do casaco de fogo para nós. É um casaco todo acolchoado e num lugar determinado você joga o querosene, aí com uma tocha você incendeia a pessoa. E na casa noturna a gente fazia isso, esfaqueava, jorrava sangue e incendiava! O cara saía pegando fogo correndo pela platéia que um bando de doido mesmo, ali da danceteria. Era um sucesso pra gente! Nós ficamos por mais de um ano trabalhando lá, quatro dias por semana. O circo foi bom aí. Só que a coisa foi boa mesmo porque veio “O Percevejo” para cá, o Luis Antonio Nascimento Correia trouxe o espetáculo do Rio para cá e tinha circo. O Gil entrou no espetáculo para trabalhar, eu conheci o Luis Antonio e teve uma proximidade. O Cacá Rosset estava no elenco, no papel principal do Patrick. Que era o cara que fica congelado. E ele gostou muito do Gil e resolveu montar o “Ubu”, do Alfred Jarry. O Abujamra ligou para casa, nessa época eu e o Gil morávamos juntos, ele ligou para casa querendo saber se ainda existia escola de circo. Fui eu que atendi, disse que não existia mais, mas que a gente ainda sabia fazer algumas coisas. Ele convocou a gente para uma reunião. Eu e o Gil fomos e levantamos todas as coisas de circo que a gente poderia ter: pirofagia, trapézio, corda indiana, pirâmide, acrobacia, malabares. Na época praticamente não tinha ninguém que fazia aquilo, pouquíssima gente fazia. A gente ficou dando essa assessoria para eles. Ficamos no elenco e chamamos as outras pessoas. Chamei o Luizinho Ramalho, que estava em Brasília. Ele ia para o Caribe com o Abel Bravo, já estava tudo certo para a viagem deles. Insisti muito para ele vir para São Paulo, disse que o espetáculo ia ser muito bom, que o Grupo Ornitorrinco era demais, e consegui convencer o Luizinho a vir para ver como que era. Ele veio, viu que a coisa era séria, que era legal. E assim, com a chegada do Tadeu, que ensinou a cascata de fogo, maçã de fogo etc, a gente foi aumentando as nossas possibilidades circenses. Com a chegada do Luizinho, assimilamos a ideia de fazer oficinas. Porque a gente era chamado para fazer circo, fazia o pouquinho que sabia e não sabia mais o que fazer. E a gente aprendeu a dar oficinas, começamos a ensinar as crianças, a fazer oficinas de acrobacia, malabares. Aí a gente formou um pacto: que no grupo que só podia entrar quem soubesse andar de monociclo. Cada um comprou um monociclo, então, quando o Grupo Eureka chegava nos lugares, já chegava de monociclo. A gente ficou com esse diferencial. E o “Ubu” fez um sucesso enorme! Foi a primeira vez que eu saí do país, nós fomos para a Colômbia, pro México, para a Espanha, graças ao circo. Eu não estava lá como atriz. E o Gil, a primeira vez que nós fomos com o “Ubu”, eu, a Regina, o Luisinho, as pessoas que o Gil chamou, nós estávamos lá como um grupo de circo. A partir daí eu fiz um espetáculo de sucesso, saí do país. Abriu uma possibilidade pra eu morar fora… Trabalhei na televisão, fiz um programa, o ‘Profissão Empresário’, e o palhaço que era o carro chefe. Eu fui fazer um só, era para eu ter gravado um único programa e eu fui, fui de palhaço, e gravei o programa inteiro. A minha carreira alavancou com o circo, devo ao circo vários espetáculos e a saída de São Paulo, a mudança de vida que houve na minha vida pessoal e profissional foi por causa do circo.

Pra entrar na escola era assim, tinha isso com os professores, mas você só percebia depois. Era uma coisa sutil, se você chegasse lá fizesse uma ou duas aulas não percebia isso. A gente que estava lá todo dia que sabia. Mas, cheguei eu e a Salete, a gente falou que tinha ido conhecer e queria fazer, eles perguntaram por que a gente queria fazer. Disse que a vida inteira eu queria fugir com o circo, que eu fazia teatro e que meu pai também fazia. Meu pai tinha me ensinado a fazer várias coisas de circo, que o pai dele dava salto mortal. O meu avô dava salto mortal. O meu pai era ator e cantor. E meu pai está vivo ainda, bem velhinho, ainda arrisca cantar algumas notas. E o meu avô era um malucão assim, e fazia salto mortal. Minha mãe falava com um certo preconceito e a gente adorava! E eles disseram que a gente tinha que ter a roupa apropriada, que era esse bendito suspensor. Tinha que ter senão mandavam a gente embora, não deixavam fazer aula. E eu dei sorte porque eu tinha um inteiriço, que minha irmã tinha feito uma plástica na barriga e nos seios e precisou usar aquele treco inteiro, aquele tipo collant. Ela me deu. E eu fiquei com aquilo e, na época, eu era muito dura de grana para comprar o tal suspensor, era difícil de achar, então usei aquele e eles aceitaram. Era inteiriço. Mas tinha que ter! Nesse primeiro dia eu escapei da vigilância deles e fui lá fazer umas piruetas e o que eu já sabia, para mostrar para a Zoraide. No outro dia eu já amanheci lá com uma roupinha de malha e o suspensor e, já passei a fazer. Não teve nenhuma burocracia maior do que a roupa adequada. Era só freqüentar. Eles queriam que você tivesse uma assiduidade. E conforme você ia se dedicando, eles iam se aproximando mais de você… O circo é reservado, eles ensinam conforme a pessoa vai merecendo, não é despejado o conhecimento. O aluno tem que ter interesse. Ir à luta.

Sobre os objetivos da escola, os professores falavam para a gente que os filhos das famílias tradicionais de circo não queriam mais continuar. Eles iam estudar e, segundo o Roger, queriam ‘ser doutor’, seguir outra profissão. Não queriam levar a vida sofrida do circo, viajando, morando em trailer, amassando barro até o picadeiro, num circo em decadência. Porque agora eu acho que o circo não está mais em decadência, ao contrário. Mas na época era super decadente. Essas famílias de circo não iam poder dar continuidade à arte deles, então aqueles professores da Piolin viram nos alunos, que eram bons, uma forma de perpetuar a arte deles. O Roger tinha muito carinho e muito gosto em ensinar bicicleta porque era o número que ele fazia e nenhum filho dele seguiu o caminho do circo. E eu acreditava que era isso, que a intenção era essa mesmo, perpetuar a arte do circo sem depender dos filhos das famílias circenses. Descobrindo outras pessoas que se interessavam. Não sei se tinha algum motivo político atrás disso, mas foi louvável a intenção.

No Festival do Guarujá, que teve antes da lona ser montada no Anhembi, eu não fui, não me apresentei. Foram os alunos que eram mais antigos. Quando eu entrei a escola já tinha um ano. Foi… a Maísa. A Maísa era a grande estrela do circo! Ela fazia corda indiana, oito metros de altura, como ninguém fazia! Pra ela era o máximo. E fazia trapézio… Foi esse pessoal que já era bom, que já estava pronto, eles apresentavam muito mais. Eu me lembro de três apresentações. Essa que foi no Pacaembu, essa grande, que a minha irmã tem o cartaz. Eu lembro daquela feita no terreno do Anhembi. E uma que foi feita lá no Bixiga, onde tem aquela feirinha de antigüidade na rua. A gente fez uma apresentação lá na rua. Eu lembro que foi fácil pra fazer envergada à frente, porque era inclinado, era uma descida, então batia a mão no chão e já era ‘pum, pum, pum’! Nunca foi tão fácil fazer envergada à frente! E eu não era das pessoas que mais se apresentavam. Mas depois de muitos anos teve o Festival de Teatro do Guarujá e o pessoal que era da Piolin, mais os professores, foram e se apresentaram lá.

Eu não faço mais bicicleta, nunca tive a bicicleta. Primeiro eu não tinha dinheiro, depois não tinha quem fizesse. A bicicletaria não fazia. Eu só treinava naquela bicicleta. Muitos, muitos anos depois o Roger voltou a dar aula de bicicleta lá na Picadeiro e eu passei a fazer de novo. Mas, o Roger já não tinha muita força pra segurar. Uma vez eu caí da bicicleta e ficou um hematoma gigantesco. Eu não falei nada para o Roger. Na hora que eu caí todo mundo correu, porque eu caí de um jeito muito feio. Depois tudo bem. Só que foi ficando roxo, o hematoma foi ficando cada vez mais feio. Um dia teve uma festinha no trailer do Zé Wilson e o Roger estava. Eu vestia uma mini saia, quando eu abaixei ele viu. Ele se levantou, foi lá e puxou a minha saia, viu o tamanho do roxo, ele falou: “Eu não posso mais dar aula de bicicleta, eu não tenho força para segurar, não podia deixar você se machucar desse jeito”. Aos poucos foi parando de dar aula de bicicleta, foi vendo que já não tinha mais como. Precisa de braço, né? E eu não tive a bicicleta, mas eu faço. Faço pé na cela, umas coisinhas ainda faço! Não para show.

(…)

Ah, eu acho importante se você conseguisse encontrar o Breno porque, para mim, ele pode nem saber disso, mas para mim aquilo era uma academia e quando ele entrou, virou um circo. Mudou o clima, mudou… E depois ele ficou até meio enciumado porque ele foi para o Rio e eles guardavam segredo da pirofagia, de algumas coisas. E quando o Tadeu veio trabalhar comigo e com o Gil, ele passou algumas informações, aí veio o Luizinho e passou mais. Aí um dia ele veio do Rio assistir o “Ubu” e ele viu que no “Ubu” tinha muita coisa e ele não estava com a gente…

Foi o primeiro… A inaugural. Muitos que saíram da Piolin, continuaram com o circo. Eu, a Regina, a Nina, o Gil. Vários foram para circo mesmo, vários foram para festivais. Depois quando o Cacá chamou a gente para fazer o “Ubu”, que foi um outro marco na história do circo no teatro, a gente precisava de um espaço para treinar, e o que nós fizemos? Nós fomos lá na Picadeiro. Era de chão de terra, numa loninha pequenininha. Ainda era do Zé Wilson e do Tadeu. Fomos treinar lá. E o pessoal que estava chegando para treinar e via a gente que já era da Piolin e já tinha uma base, jogava malabares, já fazia uma série de coisas, viam a gente ensaiando lá para aplicar no teatro, que estava fazendo um sucesso… Passou a ter muito aluno! E da escola do Zé Wilson saíram pessoas que revolucionaram, que mudaram a linguagem. Primeiro a gente levou o circo para dentro do teatro e agora com as novas linhas que existem, tem assim uma linguagem teatral, mas é de circo mesmo. A Linhas Aéreas é teatral, mas é circo! A gente tinha uma preocupação transformar o circo em teatro, e agora levaram o teatro para o circo. Eu vi lá [o Circo Zanni] em Boiçucanga, gostei muito. Fazia tempo que eu não via o pessoal das Linhas Aéreas e eu pensei isso. Quando a gente começou fazendo uma coisa, o circo tava morrendo…  naquele momento. E agora está super vivo e jovem!

Antes de entrar na Piolin, eu tinha um sonho da infância. Eu sou do interior e ia em todos os circos que existiam. O circo era mágico e muito difícil. Uma coisa quase inatingível. Era um sonho. Com a Academia Piolin, eu vi que uma pessoa normal podia aprender a fazer circo e aquilo não era um patrimônio daquelas pessoas mágicas, que saíam daquela caixinha que desfilava pela cidade com jaula de leão e tudo mais. Era uma coisa assim que até eu, se treinasse, poderia fazer. Eu vi como uma coisa palpável e como arte. Não vi como ginástica, não vi malhação. Vi como uma arte que tinha dentro do circo, uma arte pra teatro. Agora, o circo para mim, apesar de saber que qualquer pessoa que se dedique pode chegar à algum resultado, ele ainda é uma coisa mágica, um sonho, um mundo de ilusão, de fantasia, de alegria!

Deixa ver essa foto dos professores. Vou lembrando. Família Santiago! É uma troupe, eles estão sempre em circo. É uma trupe de cama elástica e báscula. Esse aqui é da troupe Santiago, esses dois. A família inteira de circo, todo mundo trabalha mesmo. Estercita, professora de mágica. A Nina vai saber melhor se a Estercita é essa ou se é aquela. A Nina fazia mágica. Savalla… Olha só! Esse é o Roberto e esse é o Gibe, com certeza! Era Ubiratan o nome dele, Ubiratan. O Índio, o Victor, agora lembrei, ele chamava Victor… O Tápia… Eram esses aí mesmo. Que legal! Então é isso, estão certinhos os nomes, só que é uma ordem meio maluca. A Zoraide era contorção, a Estercita, mágica, o Abelardo, trapézio, a Amercy era uma contorção II. Tinha contorção I. Ia até um nível com a Zoraide, e quem já era bem bom pegava ela, a Amercy, e ela dava corda indiana também. O Gibe era palhaço, mas ele era muito famoso, ele fazia TV Tupi, então ele quase não ia. Depois ele parou. Esses dois davam cama elástica. Os dois da família Santiago? O Roberto e o Victor. O Savalla, dava o aquecimento no colchonete e no plinto e quando a pessoa era muito boa, excepcional de boa, aí ia com ele de novo porque ele ensinava coisas mais avançadas de saltos. E esse dava malabares, o Ubiratan. É isso então: mágica, trapézio, contorção e saltos, corda indiana, palhaço, cama elástica, acrobacia, contorção, malabares… O que tinha de aéreos lá era trapézio e corda indiana. Não existia tecido. Lira e corda marinha também não tinha. Era bicicleta, monociclo, contorção, cama elástica… Isso aí.

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