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Academia Piolin encerrou suas aulas. Para sempre?

JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO – quarta feira, 13 de julho de 1983

Academia Piolin encerrou suas aulas. Para sempre?

“Enquanto existir criança o circo não morre”. A frase já foi repetida em todo mundo, por dezenas de palhaços. Mas em São Paulo não foi levada à sério. Quem passar pela Avenida Marginal Tietê – onde há quase cinco anos, trapézio, corda indiana, malabares, camas elásticas, trampolins ajudavam a colorir o sonho de muitos candidatos a artistas circenses – hoje verá uma pálida lembrança da Academia Piolin de Artes e Técnicas Circenses, que se propôs a ensinar os truques e mistérios do mundo do circo. A lona parcialmente furada e encardida não consegue conter nenhum chuvisco de final de tarde. A cama elástica, com suas molas enferrujadas, não pode ser ocupada nem mesmo pelas crianças que moram nas proximidades da academia desativada em dezembro de 82 por falta de verbas.

Houve época em que os alunos eram mais de cem para 12 professores. Mas a falta de verbas os reduziu. E durante o ano de 81 ficaram apenas dois professores, Amercy Fabri, quarta geração de circo, professora do curso elementar, balé aéreo e ginástica de solo, e Roger Avanzini, quinta geração de circo, professor de bicicleta e palhaço. “Resistimos durante um ano sem receber nosso parco salário de Cr$25.000,00. Nunca soubemos direito quem era o culpado.” desabafa Amercy. A dívida da Secretaria de Estado da Cultura, que mantém a Associação de Artes Circenses, que por sua vez administra a escola, no ano passado, era de quatro milhões de cruzeiros. Esse dinheiro destina-se ao pagamento do corpo docente e administrativo do circo. Amercy acha que o atraso do pagamento e o fechamento da escola se deu com a mudança de governo, que até agora parece não ter tido tempo para solucionar o problema da Academia. “Nasci no circo e vivi toda a minha vida debaixo da lona. Já fiz de tudo em picadeiros do Orlando Orfei, Garcia, Vostok, Alemã, entre dezenas de outros. Só deixei a vida do circo porque pretendia que meus filhos estudassem, e nessa vida cigana é impossível. Portanto, investi tudo na academia. Trabalhava oito horas por dia. Cheguei a ajudar a montar a lona”.

A academia que já teve alunos como Márcia Regina e Selma Egrei, Ewerton de Castro – que aprendeu trapézio para aplicar na peça ‘A Patética’ – Rodrigo Santiago – prêmio Molère; e grupo amadores de teatro, como o Abracadabra e Pessoal do Víctor, que às vezes pedia socorro aos artistas da Academia – que foi a primeira escola do gênero em toda a América Latina – corre o risco de fechar definitivamente suas portas, se a Secretaria de Estado da Cultura não se sensibilizar e providenciar recursos com urgência. Amercy acha que nunca houve consideração especial por parte do governo em relação à academia. “No Festival de Verão do Guarujá de 1980 resolveram levar o circo para a praia. Quando a lona voltou, danificada pela maresia, não recebeu tratamento especial e subiu novamente sem condições. Um circo normalmente baixa a lona uma vez por semana para mantê-la em ordem. Nós ficamos três anos sem descer a nossa.”

Há poucas escolas de circo no mundo. A mais famosa, fundada em Moscou, em 1926, transformou-se em faculdade, onde o diretor Serguei Marakov, ex-palhaço e hoje um quarentão, de gravata e paletó, comanda uma equipe de 110 professores, assessorada por pedagogos com muitas medalhas e condecorações do governo soviético. Na América Latina, São Paulo há cinco anos foi notícia em vários países pelo pioneirismo. Hoje não passa de promessa. Amercy, que considerava a academia parte de sua própria vida, está torcendo para que não aconteça o mesmo com a escola do Rio, que nasceu inspirada na de São Paulo. “Há um ano a escola carioca funciona na Praça da Bandeira, onde o programa inclui até mesmo noções de história da arte circense e matérias básicas como tratamento de animais, primeiros socorros e outros. Ao contrário da nossa, a cada dia eles crescem e não faltam verbas, até mesmo do MEC.”

Se Piolin fosse vivo, com certeza, iria ajudar a mobilizar uma campanha para salvar a academia. Ele, que foi um dos que sonhou um dia com uma escola de circo, possivelmente se sentisse frustrado, afinal, pela primeira vez, o preconceito de atuar em circo estava esmaecendo e a arte circense conquistando não só artistas de outras áreas, como também vários estudantes que já se propunham a lançar-se pelo incerto mundo cigano.

(fim da reportagem)

Esta matéria foi publicada perto das palavras cruzadas e da programação da tv, provavelmente num encarte de entretenimento, como o ‘Caderno 2’ que só começou a circular em 1986. Acima do título havia uma foto da escola com a seguinte legenda: “A falta de verbas reflete na lona rasgada e encardida” e então o texto, transcito acima.

Algumas observações: 1. Não foi encontrada referência do autor da matéria. 2. Amercy, é mais conhecida como Amercy Marrocos. Curiosamente este sobrenome, Fabri, citado na reportagem, por enquanto só foi encontrado neste texto. O nome correto do outro professor é Roger Avanzi.            3. Em cálculos aproximados, o salário mencionado de 25 mil cruzeiros, seria hoje algo em torno de 900 reais. 4. A escola do Rio é a Escola Nacional de Circo, do governo nacional, administrada pela Funarte, ligada ao Ministério da Cultura e funciona, sim, até hoje na mesma Praça da Bandeira. 5. A respeito da escola de Moscou mencionada aqui, deixo uma referência para outra reportagem (em inglês) a respeito dela: ‘Special school trains kids for huge Soviet circus’

Em 1995, na seção de “Memória” do mesmo jornal, foi publicada uma matéria com um resumo desta. Leia aqui!

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